Por que se diz ‘língua’ e não ‘linguagem’ gestual; como as pessoas surdas conseguem produzir ideias complexas e ideias profundas; os benefícios que a aprendizagem da LGP pode criar nas crianças ouvintes, melhorando a memória espacial e a atenção aos detalhes visuais. Para quem pouco sabe sobre o mundo da surdez vale a pena ler o depoimento de Pedro Mourão, presidente da Associação Portuguesa de Surdos. Hoje comemora-se o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa. Só o conhecimento traz maior inclusão.
- Quando, como e onde foi fundada a Associação de Surdos em Portugal?
- A Associação Portuguesa de Surdos (APS) foi oficialmente fundada a 24 de setembro de 1958, com o apoio de figuras ilustres da sociedade, incluindo pais, familiares e outros simpatizantes. Na altura, a comunidade surda já se reunia no Grupo Desportivo de Surdos-Mudos de Lisboa (GDSML), fundado a 1 de junho de 1954. Originalmente, a APS tinha como missão a reeducação e reabilitação dos surdos. No entanto, rapidamente se percebeu que o verdadeiro desejo da comunidade era ter um espaço seguro onde pudessem conviver em Língua Gestual Portuguesa (LGP) e sentir-se como uma grande família, unida por uma língua e cultura comuns. A sede provisória da APS foi inicialmente na Calçada do Lavra, mudando-se em abril de 1959 para a Avenida Estados Unidos da América e, em outubro desse mesmo ano, para a Avenida da Liberdade, onde permaneceu até 2014. Atualmente, a sede encontra-se no Lumiar, em Lisboa.
- Qual a importância de se comemorar o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa e o motivo de ser neste dia?
- A celebração do Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa, a 15 de novembro, é essencial para valorizar a LGP como uma língua plena e ao nível do português, desmistificando a ideia errada de que é uma ‘linguagem’ inferior, um termo incorreto ainda muito presente no quotidiano. Este dia celebra não só a identidade e expressão linguística dos surdos, mas também educa a sociedade sobre a importância da LGP. Embora o reconhecimento constitucional da LGP tenha ocorrido a 20 de setembro de 1997, com a Lei Constitucional n.º 1/97, a escolha desta data para celebrações revelou-se inconveniente, por estar muito próxima de outras datas marcantes para a comunidade surda, como o Dia Nacional do Surdo, o Dia Mundial do Surdo e o aniversário da APS. Além disso, o início do ano letivo dificulta a preparação de atividades escolares e por docentes de LGP. Assim, decidiu-se pela comemoração a 15 de novembro, data de criação da Comissão para o Reconhecimento e Proteção da Língua Gestual Portuguesa e Defesa dos Direitos das Pessoas Surdas (CRPLGPDDPS), em 1995. Liderada pela APS e integrando associações de surdos, famílias e intérpretes, esta comissão desempenhou um papel crucial, culminando na aprovação da LGP na Constituição da República Portuguesa, marcando um avanço significativo nos direitos linguísticos e culturais das pessoas surdas.
Mais do que uma ferramenta de comunicação, a LGP é uma língua rica e visual que permite às pessoas surdas transmitir ideias complexas, emoções profundas e experiências de uma forma que a língua falada nunca conseguirá captar
- Que eventos ou iniciativas a Associação Portuguesa de Surdos irá organizar para celebrar este dia?
- Neste ano a APS não organizará eventos próprios, mas estará presente nas concentrações nacionais marcadas para o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa. Estas concentrações, que decorrerão de manhã no Parque Eduardo VII e à tarde em frente à Assembleia da República, são promovidas pela Federação Portuguesa das Associações de Surdos e contam com a participação de várias associações de surdos. A escolha de celebrar este dia com uma manifestação pública destaca a importância do tema da acessibilidade, que continua a ser insuficiente em áreas essenciais da sociedade, como a educação, saúde e emprego. A data é, portanto, um apelo coletivo e urgente ao reconhecimento e à implementação efetiva de medidas de acessibilidade para a comunidade surda em Portugal.
- De que forma a Língua Gestual Portuguesa (LGP) contribui para a identidade e cultura da comunidade surda?
- A Língua Gestual Portuguesa é a espinha dorsal da identidade e cultura da comunidade surda em Portugal, a expressão autêntica do que significa ser surdo. Mais do que uma ferramenta de comunicação, a LGP é uma língua rica e visual que permite às pessoas surdas transmitir ideias complexas, emoções profundas e experiências de uma forma que a língua falada nunca conseguirá captar. Para a comunidade surda, a LGP é o espaço onde podem ser genuinamente elas mesmas, livres das limitações que encontram na sociedade ouvinte.
Esta língua é também uma manifestação de resistência e autoafirmação. Num mundo onde o acesso e a inclusão são muitas vezes negados, a LGP representa a luta incansável por direitos e igualdade. Através dela, a comunidade surda preserva a sua história, valores e tradições, transmitindo-os de geração em geração, e encontra formas de proteger o seu espaço cultural. Em eventos artísticos e desportivos como o festival Clin d’Oeil e nos Surdolímpicos, bem como em festivais de teatro, cinema, literatura e congressos sobre a cultura surda, a comunidade escolheu, muitas vezes, uma participação segregada da sociedade.
Este isolamento não é um afastamento, mas uma escolha consciente para garantir que a língua gestual seja o meio predominante, criando um espaço seguro onde podem partilhar, inovar e explorar a cultura surda sem barreiras. A LGP não é, então, apenas uma língua: é o alicerce de um ‘mundo dentro do mundo maior’, uma realidade única onde a identidade surda encontra um espaço vibrante e seguro, preservando a expressão autêntica e o respeito profundo por uma comunidade que é plena na sua singularidade.
Para muitos alunos surdos, as barreiras linguísticas nas salas de aula são uma realidade diária que limita o seu potencial e os coloca em desvantagem, impedindo o seu desenvolvimento escolar, académico e pessoal
- Quais são os principais desafios enfrentados na promoção e valorização da LGP em Portugal?
- A promoção e valorização da Língua Gestual Portuguesa em Portugal envolve vários desafios profundos e persistentes, que comprometem o reconhecimento e a plena inclusão da comunidade surda na sociedade. Um dos maiores obstáculos é a falta de sensibilização e conhecimento sobre a LGP. A sociedade portuguesa, em grande parte, ainda vê a LGP como uma ‘linguagem’ inferior, o que perpetua preconceitos e dificulta o seu reconhecimento como uma língua plena, rica e complexa. Este desconhecimento gera barreiras culturais e sociais que limitam o acesso dos surdos a serviços essenciais, como a educação, a saúde e o emprego, onde a acessibilidade em LGP continua a ser extremamente insuficiente. Apesar de a inclusão estar a crescer e a enraizar-se como ideia na sociedade, ainda enfrentamos um dos nossos maiores entraves: a constante representação da comunidade surda por pessoas que não fazem parte dela. Na sua maioria, são ouvintes sem um conhecimento profundo da LGP; intérpretes que, por vezes, estendem o seu papel de ponte comunicacional para o de ‘representantes’ da comunidade – uma função que não lhes compete, nem nunca deveria caber-lhes; e ainda surdos que, por não participarem ativamente na comunidade, não conhecem as suas realidades internas.
Esta representação incorreta afasta ainda mais a sociedade da verdadeira voz da comunidade surda, criando um ciclo de incompreensão e marginalização. Um exemplo disso é quando intérpretes ou especialistas sem ligação direta à Comunidade Surda são convidados para falar em nome dos surdos em eventos públicos ou na televisão, transmitindo uma visão limitada e, muitas vezes, enviesada da realidade que vivemos diariamente. Outro entrave significativo é a escassez de recursos e políticas públicas eficazes. Faltam programas educativos que garantam o ensino de qualidade da LGP nas escolas e a formação de docentes especializados.
Para muitos alunos surdos, as barreiras linguísticas nas salas de aula são uma realidade diária que limita o seu potencial e os coloca em desvantagem, impedindo o seu desenvolvimento escolar, académico e pessoal. Por fim, o preconceito e a marginalização social também continuam a ser desafios graves. A desvalorização da LGP como língua e o tratamento da surdez como deficiência a ser "corrigida" perpetuam atitudes discriminatórias que comprometem a aceitação e integração da comunidade surda. Promover e valorizar a LGP em Portugal exige, assim, um compromisso claro e urgente de toda a sociedade, para que seja vista e respeitada como uma língua e cultura plena. É fundamental que as políticas públicas, a educação e os meios de comunicação avancem nesta direção, assegurando o direito da comunidade surda a uma representação digna, igualitária e visível.
Muitas políticas são implementadas sem o nosso aval ou parecer, sendo decididas por pessoas alheias à Comunidade Surda e sem um entendimento profundo da nossa realidade
- Como têm evoluído os direitos linguísticos das pessoas surdas em Portugal ao longo dos anos?
- Antes de abordarmos os direitos linguísticos das pessoas surdas em Portugal, importa mencionar que, nos anos 60, o linguista William Stokoe, na Universidade Gallaudet, nos Estados Unidos da América, demonstrou que a língua gestual americana era, de facto, uma língua natural, com sintaxe e gramática próprias, independentes do inglês. Até então, pensava-se que esta era uma versão simplificada ou incompleta do inglês. Esta descoberta inspirou uma onda de investigações em vários países, cada um com as suas universidades e meios académicos, que resultaram na constatação de que as línguas gestuais eram independentes das línguas orais e escritas dominantes.
Em Portugal, foi durante os anos 80 e 90 que se destacaram os trabalhos académicos de Maria Isabel Pratas (Mãos Que Falam, Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa), e de Maria Augusta Amaral, Amândio Coutinho e Maria Raquel Delgado Martins (Para Uma Gramática da Língua Gestual Portuguesa). Nessa época foi também publicado o Gestuário, produzido pelo Secretariado Nacional de Reabilitação em conjunto com associações de surdos, incluindo a APS. Este é o único dicionário de LGP reconhecido pela comunidade, pois, apesar de antigo, teve o envolvimento ativo da Comunidade Surda e não limita a LGP a dialetos regionais específicos, ao contrário de outros dicionários produzidos com fins lucrativos. Com o avanço da investigação, as publicações e a forte advocacia de várias instituições representativas da Comunidade Surda, em 1997 a LGP foi finalmente reconhecida constitucionalmente.
Este reconhecimento teve repercussões importantes, nomeadamente em legislações que garantem o direito à educação bilingue para alunos surdos (onde a LGP tem o mesmo estatuto que o português) e o direito à acessibilidade através da interpretação de Língua Gestual Portuguesa. No entanto, a maioria das pessoas, incluindo políticos, continua a perpetuar, muitas vezes de forma inconsciente e, em casos mais raros, deliberada, a imagem de que a LGP é apenas uma extensão do português, como se pensava nos tempos pré-Stokoe. Há décadas que foi provado que não é o caso, e essa continua a ser uma luta contra estigmas; não precisamos de provar novamente o que já foi demonstrado cientificamente. Infelizmente, em algumas áreas, assistimos a retrocessos, pois muitas políticas são implementadas sem o nosso aval ou parecer, sendo decididas por pessoas alheias à Comunidade Surda e sem um entendimento profundo da nossa realidade.
- A LGP deveria ser incluída no programa de ensino das escolas?
- Sim, a inclusão da Língua Gestual Portuguesa (LGP) no currículo escolar é uma medida que promove a verdadeira inclusão social das pessoas surdas, dando-lhes uma presença significativa no espaço público e educativo. Ao aprenderem LGP, as crianças ouvintes adquirem ferramentas que lhes permitem interagir e conviver com colegas surdos de uma forma natural e igualitária. Este conhecimento proporciona às crianças surdas o sentimento de pertença e aceitação, enquanto para os alunos ouvintes representa uma educação inclusiva que os sensibiliza para a diversidade e os ajuda a entender as especificidades da comunicação visual.
Mais do que um benefício direto para a Comunidade Surda, a aprendizagem da LGP traz vantagens profundas para os alunos ouvintes, mesmo que não tenham contacto direto com pessoas surdas. Estudos demonstram que o ensino de línguas visuais, como a LGP, estimula competências cognitivas e de comunicação não-verbal que beneficiam o desempenho académico geral e promovem uma visão mais holística da comunicação. Aprender LGP envolve o uso intensivo de memória espacial e atenção aos detalhes visuais, desenvolvendo noções de espaço, expressão e leitura corporal, que são essenciais para uma comunicação eficaz em qualquer contexto.
Este treino aumenta também a empatia e as capacidades sociais dos alunos ouvintes, dotando-os de uma sensibilidade maior em interações quotidianas, tornando-os mais atentos a aspetos não-verbais e ao tom emocional dos seus interlocutores. Além disso, a introdução da LGP na educação de crianças ouvintes contribui para formar uma sociedade mais inclusiva e culturalmente rica. O conhecimento desta língua, mesmo que não seja usado diretamente, reflete-se numa atitude mais aberta e respeitosa em relação à diversidade, promovendo cidadãos mais informados e comprometidos com os princípios de equidade e igualdade de oportunidades. Esta aprendizagem não só diversifica o leque de competências dos futuros profissionais, mas cria uma sociedade onde a inclusão faz parte dos valores centrais, capacitando cada cidadão a valorizar as diferentes formas de comunicação e a apoiar a integração plena de todos os membros da sociedade.
- Quais são os principais mitos ou mal-entendidos que a sociedade portuguesa ainda tem sobre a LGP?
- Alguns dos principais mitos e mal-entendidos que persistem em Portugal sobre a Língua Gestual Portuguesa (LGP) incluem, em primeiro lugar, a ideia de que a LGP é apenas uma tradução direta ou uma extensão do português falado, como se fosse uma versão simplificada ou visual da língua portuguesa. Esta conceção errada é muitas vezes reforçada pelo uso incorreto do termo ‘linguagem’ para se referir à LGP, quando o termo correto é ‘língua’. Enquanto ‘linguagem’ se refere à forma de comunicação (linguagem oral, linguagem escrita, linguagem corporal, etc.), ‘língua’ indica um sistema linguístico completo, com estrutura e regras próprias – o que a LGP, de facto, é. Este mito ignora que a LGP tem uma estrutura gramatical independente, sendo uma língua natural com as suas próprias regras, expressões idiomáticas e formas de organização linguística, tal como qualquer outra língua falada.
Outro mito comum é a crença de que todas as línguas gestuais são iguais em todo o mundo, o que leva muitas pessoas a pensar que a LGP é semelhante à língua gestual americana ou a outras línguas gestuais. Na realidade, cada país desenvolve a sua própria língua gestual, adaptada à sua cultura, realidade e história, e estas línguas podem ser tão diferentes entre si como o português é do japonês ou do árabe. Esta falta de entendimento leva à ideia de que aprender LGP não traz valor cultural específico para os portugueses, quando, na verdade, representa um património linguístico e cultural único. Por fim, persiste a visão de que a LGP é de utilidade limitada, usada apenas por pessoas surdas e pelos profissionais que trabalham diretamente com esta comunidade. Este mal-entendido desvaloriza o seu potencial inclusivo e ignora os benefícios que aprender LGP pode trazer para todos, incluindo os ouvintes. A LGP é uma ferramenta de comunicação poderosa que ajuda a construir uma sociedade mais inclusiva e que, ao ser aprendida por mais pessoas, promove a empatia e a compreensão, enriquecendo a comunicação em todos os contextos sociais.
- De que forma a Associação trabalha para sensibilizar o público geral sobre a importância da LGP?
- A Associação trabalha ativamente para sensibilizar o público sobre a importância da Língua Gestual Portuguesa (LGP) através de várias estratégias. Realizamos eventos, campanhas e workshops abertos a toda a comunidade, onde promovemos o conhecimento da LGP e da cultura surda, desmistificando os mitos que ainda prevalecem sobre esta língua. Estas atividades visam não só informar, mas também envolver o público, proporcionando uma experiência direta com a LGP, o que ajuda a criar empatia e uma maior compreensão das especificidades da comunicação visual. Além disso, a Associação desenvolve parcerias com escolas, empresas e instituições públicas para introduzir a LGP em diversos contextos, sensibilizando para a importância da inclusão e acessibilidade. Em escolas, organizamos sessões educativas onde alunos e professores têm contacto com a LGP e aprendem sobre a cultura surda, contribuindo para a criação de ambientes mais inclusivos desde a infância.
Nas empresas, promovemos ações de formação e sensibilização, mostrando o valor da LGP como competência de inclusão e como um ativo importante no atendimento ao público. Por fim, utilizamos as redes sociais e os meios de comunicação para disseminar conteúdos sobre a LGP, alcançar novos públicos e tornar o conhecimento acessível a todos. Através de vídeos informativos, depoimentos de membros da comunidade surda e materiais didáticos, a Associação procura inspirar e educar, reforçando a LGP como um elemento central de uma sociedade mais justa e igualitária. Esta presença digital permite-nos aumentar o alcance da nossa mensagem e envolver o público de forma contínua, promovendo uma mudança gradual na perceção social da LGP e da Comunidade Surda.
Predomina uma abordagem que privilegia a reabilitação auditiva, vendo a pessoa surda como alguém a ser ‘curado’ ou ‘corrigido’ através da audição, perpetuando a visão de que a surdez é uma deficiência a superar, em vez de uma identidade linguística e cultural a respeitar
- Como vê a presença da LGP nos meios de comunicação social e na esfera pública? Considera que há espaço para melhorias?
- A presença da Língua Gestual Portuguesa (LGP) nos meios de comunicação social e na esfera pública tem evoluído, mas ainda é limitada e muitas vezes insuficiente para garantir uma verdadeira inclusão. A interpretação em LGP tornou-se mais visível em alguns contextos, especialmente em transmissões de eventos oficiais, serviços públicos e certos programas televisivos, o que representa um avanço importante. No entanto, a cobertura permanece esporádica e, muitas vezes, relegada para um pequeno canto do ecrã, o que limita o impacto e acessibilidade da comunicação em LGP. A presença da LGP como opção (igual aos closed captions, legendas e teletextos) em conteúdos de entretenimento, cultura e desporto é quase inexistente, o que impede uma inclusão total da Comunidade Surda na vida social e cultural.
Sim, há um grande espaço para melhorias. A começar pela expansão da interpretação em LGP em conteúdos televisivos e online, incluindo séries, filmes e eventos desportivos, que também são de interesse da Comunidade Surda. A criação de conteúdos especificamente pensados em LGP e que incluam diretamente membros da comunidade seria outro passo fundamental para representar de forma mais genuína a cultura surda nos media. Além disso, poderia haver mais programas educativos sobre a LGP e a Comunidade Surda, que não só informassem, mas também dessem visibilidade a questões culturais e sociais. Um ótimo exemplo é a série Acende A Luz Para Eu Te Ouvir da RTP2, lançada na década passada. A maior inclusão da LGP nos meios de comunicação social não beneficia apenas a Comunidade Surda, mas sensibiliza o público em geral, promovendo uma sociedade mais informada e consciente sobre a diversidade linguística e cultural. Uma abordagem mais abrangente e representativa da LGP contribuiria para a desconstrução de estigmas e para uma maior aceitação, valorização e normalização desta língua no quotidiano.
Hoje, infelizmente, assistimos a uma regressão, com preconceitos antigos a ressurgirem, reforçando a ideia de que a oralidade é superior e que a língua gestual é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo — falácias que a experiência e a ciência já desmentiram
- Como classifica Portugal no espaço europeu no que à Língua Gestual e direitos dos surdos diz respeito?
- Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer em comparação com outros países europeus em relação aos direitos linguísticos e à inclusão das pessoas surdas. Embora haja algumas políticas e leis que reconhecem a Língua Gestual Portuguesa (LGP) e garantem o direito à educação bilingue, na prática estas leis não são efetivamente implementadas. Predomina uma abordagem que privilegia a reabilitação auditiva, vendo a pessoa surda como alguém a ser ‘curado’ ou ‘corrigido’ através da audição, perpetuando a visão de que a surdez é uma deficiência a superar, em vez de uma identidade linguística e cultural a respeitar. Importa sublinhar que a opção de "cura" ou de reabilitação só é legítima quando feita pela própria pessoa, com total consciência e acesso a todas as informações e alternativas necessárias. Não é legítima, porém, quando é imposta ou decidida por terceiros numa lógica paternalista, onde outros querem determinar o que é "melhor" para a vida da pessoa surda. Esta perspetiva compromete o acesso pleno ao ensino bilingue, que deveria valorizar a LGP em pé de igualdade com o português. Apesar de existirem leis para assegurar este direito, estas são frequentemente ignoradas ou tratadas como meras formalidades, o que leva à insatisfação das famílias e da própria Comunidade Surda, que vê o seu direito à inclusão linguística negado ou negligenciado.
Atualmente, um grupo de pais, o Movimento Inclusão Efetiva, está a circular uma petição para exigir melhorias nas condições educativas e de inclusão para crianças com deficiência, neurodivergência e surdez. Este movimento reflete uma insatisfação crescente com a situação atual e sublinha que as práticas inclusivas existentes são frequentemente pouco mais do que teorias na legislação, com pouca implementação real. No caso específico da Comunidade Surda, o problema não é recente, mas sim uma questão histórica. A exclusão social e o preconceito contra línguas gestuais remontam a milénios, com um marco particularmente negativo em 1880, no Congresso de Milão, onde se aprovou uma resolução que impôs o oralismo e proibiu o uso de línguas gestuais. Esta abordagem falhou ao longo de um século e, após muitos insucessos de integração, acabou por ser abandonada em favor do gestualismo. Hoje, infelizmente, assistimos a uma regressão, com preconceitos antigos a ressurgirem, reforçando a ideia de que a oralidade é superior e que a língua gestual é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo — falácias que a experiência e a ciência já desmentiram. Assim, enquanto países europeus como a Finlândia, a Suécia e a Dinamarca estão mais avançados em termos de reconhecimento e apoio às línguas gestuais e oferecem sistemas de educação bilingue bem implementados e acessíveis, Portugal ainda precisa de superar estes preconceitos e garantir que as leis são realmente aplicadas. O compromisso de implementar a inclusão bilingue real, e não apenas na letra da lei, é fundamental para colocar Portugal ao nível dos melhores exemplos europeus, criando uma sociedade onde a Comunidade Surda seja verdadeiramente incluída e respeitada, sem preconceitos e com acesso pleno à sua língua e cultura.
- Que mensagem gostaria de transmitir à sociedade portuguesa no Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa?
- A nossa mensagem à sociedade portuguesa neste Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa é clara: a inclusão só é autêntica quando é construída connosco, e não sem nós. A Língua Gestual Portuguesa (LGP) é uma expressão natural e artística da comunicação humana, uma língua completa que pode ser aprendida tanto por surdos como ouvintes, uma forma de expressão rica e bela que merece ser valorizada e preservada, tal como qualquer outro património cultural. A inclusão real só é possível quando cada pessoa se dispõe a ver para além dos seus próprios preconceitos e mitos, reconhecendo que há um mundo — o nosso — que não conhece e que deve ser abordado com mente aberta e respeito, como ao visitar um país com uma cultura nova e fascinante. Ao longo da história, muitos falaram por nós, decidiram o que era ‘melhor’ para nós, e interpretaram a nossa realidade a partir das suas próprias suposições. Hoje, pedimos algo diferente: que caminhem ao nosso lado, como aliados. Nós sabemos melhor que ninguém o que significa viver como surdos, as barreiras que enfrentamos e as mudanças de que realmente precisamos para uma vida digna e plena. Não queremos uma inclusão que venha de cima para baixo; queremos uma inclusão que nasce da escuta ativa, da compreensão e do apoio verdadeiro. Por isso, neste dia, convidamos a sociedade a caminhar connosco, a apoiar-nos com respeito e a valorizar a LGP como parte integrante da nossa identidade e cultura.